o céu partido ao meio, no meio da tarde.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O amigo dos cavalos

- Doutor, eu juro que não estou doente. Sei que não consigo pensar em outra coisa. Sei que minha ideia fixa é passível de ser reconhecida como psicose, mas não estou doente! É a voz dele que retumba em todas as paredes. É o despertador que me acorda com ele dizendo: bom dia! Eu sei que é. É ele que cacareja às cinco da manhã no galo da vizinha e tenho certeza que é o sorriso dele que abre o céu, quando o sol penetra o horizonte. Por favor, doutor, entenda que não estou louco. Entenda que quando cruzo a rua e vejo-o nos galhos tímidos e secos das árvores é porque realmente a face dele lá encontra-se. Entenda que as pessoas passam por mim e, mal intencionadas, derramam o cheiro dele no ar frio... eu juro que sim! Por favor, doutor, não é doença. O fato é que a risada dele está em cada um que tropeça, em cada balão que estoura. Eu o vi naquele festival italiano do vinho - o senhor estava? Lembro-me que cada ator com perna-de-pau era ele de máscara. Cada palhaço que se apresentava, entre anciões e recém-nascidos, era ele querendo falar comigo. Eu tinha uma criança no colo e sei que era ele ocultando as minhas sombras. Tudo o que é malicioso em mim, doutor, desvanece! O senhor vê que não é alucinação? Ele me santifica, doutor. Entenda que é etéreo o que acontece. Uma vez me disseram que é amor. Mas se o amor for patologia, estarei perdido. Estou tão imerso que já aprendi a respirar debaixo d’água. Já não posso mais caminhar, doutor, pois meu corpo tornou-se líquido e as luzes da superfície navalharão-me os olhos. Deixe-me submergir na pequena morte que a cintura fina dele me traz. Ele me mata, doutor. Estou morto ou estou vivo? Me diga, doutor! Comprove que a dor que preenche o meu coração é somente uma esquizofrenia. Que tudo isso é um truque da minha mente. Que não existo. Que ele não existe. Prove, doutor, que a distância é traiçoeira. Que a lembrança da mão dele na minha é mentira. Que a minha língua contornando-o é memória falsa, que é invenção. Por favor, doutor, acho que não estou bem. Meu coração se esmaga contra as minhas costas e impede a circulação. Se isso é amar, doutor, devo estar amando por completo. Amo da ponta dos meus cabelos duros ao dedões dos meus pés magros e feios. Sinceramente, doutor, se esse for o diagnóstico, não terei escapatória. Me tendo ao destino e peço-lhe que não me trate. O amor não tem remédio. O amor é o âmago gritando - o senhor escuta? O amor é o braço que atravessa o tempo montado a cavalo. Já lhe disse, doutor, que o meu nome significa o amigo dos cavalos? 
Sou demente, doutor, sou. E opto sê-lo. 
Quero sangrar pelo nariz e, qual criança, olhar para o alto com a cabeça para trás. Quero dançar a valsa tórpida composta pelos passos tronchos dele - o senhor escuta? É um tenor agudo que se ouve, que perfura os espíritos. 
Me interne, doutor. Porque se for para viver sem a orelha dele no meu peito, juro que prefiro a insanidade. 

O meu amor está prescrito nas bulas. O meu amor é a loucura dos incertos. 
O meu amor é a gargalhada que esbarra no palco
e o derruba no suor 
dos meus medos:
das 
doidices 
das 
saudades. 

F;

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