o céu partido ao meio, no meio da tarde.

domingo, 3 de dezembro de 2017

O caldeirão dos feiticeiros

- Você está obcecado com os seus dentes!

(Ora, meu caro. Não é simplesmente uma questão estética. Quando olho no espelho depois da comida, quero me certificar de que tudo esteja no seu devido lugar. Quero estar confiante. Não é limpeza: é insegurança. É o meu inconsciente vigilante. Não é medo da imundície, da sujeira. Sou eu tentando transparecer o lado mais pulcro. Não é o pedaço de herbácea que destoa: sou eu exigindo que haja espaço suficiente para que as minhas palavras fluam sem empecilhos. Sou eu querendo falar no teu ouvido no meio dessa gente toda. Sou eu me escondendo detrás desses pedaços esmaltados, chamando a tua atenção, fazendo que me mires com esses teus olhos cansados: olhos de quem se faz detrás do figurino. A minha obsessão em tê-los polidos é tão somente o reflexo do que eu quero que vejas. Quero estar sempre a postos, com os caninos afiados e preparados como armas, para que, quando gires esse teu rosto delicado - com o gesto sútil dos que caminham com os pés abertos - não enxergues nada mais. Que a mesa desapareça. Que a comida se desfaça. Que o vinho se derrame sobre o teu corpo, tão miúdo e belo, e que te encante. Que eu te encante. Que os meus lábios sejam o teu objetivo de prazer. A minha boca é o caldeirão dos feiticeiros. Quero derramar sobre ti a saliva ácida de quem mata dragões. A minha boca é a cova dos dragões. E quero somente te devorar por completo. Minha preocupação não é superficial. Quero ter os molares decididos a morder a tua pele clara. Quero ter a facilidade de enterrar os incisivos na tua massa feita à mão e decorada de rabiscos. Quando sorrio no espelho e te resguardo de canto estou pedindo para que me queiras. O meu sorriso é a minha carta de entrada. O meu sorriso é o meu menu principal. E farei de tudo para que me percebas e me desejes. Sorrirei até endurecer os maxilares para demonstrar o que o meu olhar, já tão anestesiado, não consegue transmitir. O sorriso é o salva-vidas da alma. E os meus dentes brancos são o convite desesperado para que mergulhes.)

- Gosto de tê-los limpos. Sempre.

E te sorri tão profundo que afoguei
as olheiras em minhas próprias
sobrancelhas.

(Esse sorriso,
meu caro,
é tudo o que tenho
para
te oferecer.)

F;

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